Em textos anteriores defendi que o isolamento no século XXI vai ser acima de tudo cognitivo, fruto da incapacidade intelectual para dar resposta a toda as solicitações do meio (social e natural). Cresce um fosso entre a capacidade individual e o crescimento do todo colectivo, resultando num cada vez maior isolamento intelectual e afectivo. Agora pretendo explicar como é que o aumento das necessidades intelectuais tem implicações no aumento das necessidade afectivas e como é que esta dinâmica é acentuada pelas narrativas essencialistas de identidade.
Esta espécie de narrativa cria uma dinâmica de construção das percepções das identidades muito simplista. Adaptadas, apenas, a sociedades mais simples, porque encerram os individuos num conjunto reduzido de qualidades, valorizadas por determinados requisitos e que acabam por ser apresentadas pela essencialidade de cada um. Estes requisitos são baseados, por um lado, na constância e frequência com que se expressam e, em conjunto, desenham os traços de personalidade dos indivíduos, dando-lhes uma aparente coerência de raciocínio e comportamental. Por outro, essas duas qualidades conferem uma ideia de poder, isto é, as características de personalidade expressas de forma mais constante e frequente são aquelas que mais orientam o desenvolvimento lógico e comportamental do indivíduo, influenciando de forma determinante a sua ontologia futura. É assim que se constroem as narrativas de identidade quando se procura afincadamente o que é “essencial” em cada um.
Acontece que estes pressupostos que suportam estas narrativas minam a nossa capacidade de desenvolvimento e a nossa relação com este mundo complexo em que vivemos. Assumo nesta abordagem que a personalidade é algo mais vasto, que não se deverá reduzir a uma pequena porção dos nossos comportamentos ou pensamentos mais constantes.
Como disse estas narrativas geram sentido. Mas é um sentido íntimo e é um sentido cada vez mais fechado. Quando sabemos bem o que nos caracteriza, de tal forma que se torna intuitivo, as reacções a qualquer coisa que sintamos, e que ameaça a nossa individualidade, torna-se intensa e espontânea. Essa intensidade emocional é a medida da nossa maturidade individual, mas também é a medida do grau de intolerância ao “estranho” ou ao novo. O aumento da incapacidade de acomodar nova informação através da conciliação desta com a nossa estrutura de valores (ou narrativa de identidade)resulta no crescimento de tensão emocional latente. Como disse anteriormente, nessa situação, quando falta criatividade ou imaginação para viver no mundo complexo, a relação com o meio (social e natural) faz-se exclusivamente a partir dos valores. Sendo os valores as zonas mais estabelecidas da personalidade de cada um, qualquer ameaça à sua integridade despoleta reacções violentas. Ora numa sociedade em que o ambiente é cada vez mais diverso, essas linhas de fractura são também cada vez maiores. É desta forma que nos vamos fechando aos outros e ao mundo em geral.
Quanto a mim as narrativa essencialistas amplificam os sentimentos de exclusão, e, de certa forma, são elas que obstruem o desenvolvimento de acordo com as “leis” de ajustamento exigidas em ambientes voláteis como os ambientes complexos. Mais, quaisquer circunstâncias podem converter esta conflitualidade latente numa conflitualidade pública grave. É aqui que as narrativas do devir podem ser úteis, porque defendem a potencialização do ser humano, valorizando as suas reservas de personalidade. Aquilo que na personalidade não é central, que é ténue, às vezes estranho, inquietante. Ou seja tudo o temos memorizado e que “recebemos” dos ambientes excêntricos ao nosso quotidiano, ou por quaisquer outras vias menos ordinárias à nossa rotina.
Esta fase da humanidade é nova porque se organiza e promove o surgimento de novas especialidades, individualidades e localidades e que pretende, simultaneamente, mantê-las sintonizadas com o global. É este o desafio que me permite arriscar concluir que estamos a atravessar um período crítico da humanidade.
A valorização da especialidade e a defesa da liberdade individual são movimentos recentes originados nas sociedades ocidentais e que se desenvolveram durante os séculos XIX e XX. Chegados ao século XXI a sociedade evoluiu de tal forma na sua diversidade que terá atingindo um ponto crítico. Fê-lo à custa de dinâmicas paralelas, com sentidos inversos, cresceu na homogeneidade cultural global e na heterogenidade dos nichos disciplinares e culturais. Agora as escolhas são as seguintes: continuar a promover a individualização e a especialização, defendendo narrativas abertas sobre a identidade, que se baseiam na ética da aprendizagem, ou, pelo contrário, promover a redução da heterogeneidade. Defendendo uma ordem de qualquer tipo, redutora da incerteza, instabilidade, etc. Esse é um dos perigos da vertigem resultante do desconhecido. A fase é crítica por isso, porque pode existir uma tentação de responder aos desafios através de uma regressão às soluções do passado.
A hipótese que aqui defendo é suportada na ideia de que as narrativas de identidades podem ser vistas como molas. Tal como esses objectos que são capazes de aguentar uma certa pressão até que, uma vez ultrapassada, se estragam, as sociedades podem desenvolver estas lihnas de fractura até entrar em ruptura. Se a sociedade decidir evoluir no sentido da redução da heterogeneidade poder-se-á manter a visão essencialista da identidade, se a opção for da continuação do desenvolvimento da complexidade, que permite evoluir em diferenciação e em globalidade, a mola tem de ser de outro tipo. É por isso que é importante dar atenção às narrativas do devir. Estas desvalorizam a ideia de que o ser humano se deve caracterizar apenas pelas suas características estáveis e de maior poder. Assumindo que no mundo complexo todas as reservas de personalidade são sementes potenciais para a aprendizagem, de ajustamento, mudança e expansão.
Somos uma multiplicidade de dimensões, assumimos uma vastidão de personalidades, de acordo com cada contexto, ao longo do espaço e do tempo. E porque estamos sempre a aprender, sintonizamo-nos cada vez mais com mais contextos que nos estimulam a alterar aspectos da nossa mentalidade e comportamento. Sugiro por isso que encaremos a nossa identidade como algo mais vasto, mas também mais circunstancial. Só assim viveremos mais de acordo com as nossas escolhas e com as exigências do nosso meio. Só assim viveremos assumindo uma identidade única sem viver permanente num sobressalto emocional e com a sensação de que estamos constantemente a romper com o que somos, com a sociedade e com o meio.